A mais de uma dúzia de anos atrás iniciei o Curso de Cinema, um blog com o propósito de democratizar filmmaking. Na época, eu cursava cinema nos EUA onde poucos no Brasil tinham acesso e acreditava, então como agora, que acesso a conhecimento não deve ser uma das barreiras de entrada no cinema - já basta o resto, não é mesmo?
Após cinco anos não-intermitentes de faculdade, trabalho (sem sequer um dia de férias) e uma quantidade obscena de cafeína, fui levado ao infame “burnout”, que me deixou hospitalizado por três dias. Diante dessa “wake-up call”, depois que formei, tomei a decisão radical de deixar tudo para trás: Apartamento, trabalho, namorada, os Estados Unidos (onde já vivia a maior parte da minha vida) e o querido blog.
Por dois anos não fiz nada… Nista, nichts, niets, nothing, p*rra nenhuma! Como o personagem Peter Gibbons do clássico Office Space (1999) colocou de forma cabal:

Eu não fiz absolutamente nada e foi tudo que eu esperava que pudesse ser.
Na verdade, quando digo “nada”, quero dizer “tudo”, tudo que eu sempre quis fazer mas não podia, ou melhor, não me permitia: Um hiking de 7 dias em Mont Blanc com meu primo, de Chamonix ao topo da montanha mais alta dos alpes, passando pelas fronteiras ítalo-francesa-suíça; um mochilão de 8 meses "solo", de Budapeste, a Barcelona, a Bratislava, ao Brasil que eu mal conhecia, com uma rotina que consistia em pub crawling nas nights e café hoping durante o dia; sem calendários, obrigações e satisfações a serem dadas.





Hiking em Mont Blanc
Após essa lavagem de alma mais do que essencial - eu diria vital, me estacionei em Portugal, onde por mais de 3 anos trabalhei para uma produtora de serviços nas funções de videomaker, produtor, editor, dentre outras. Hoje, ganho a vida como freelancer, por conta própria, não tenho chefe nem CEP, este mês estarei no sul da França, quanto ao mês que vem… nem eu sei.



Alguns dos "escritórios" onde estive trabalhando. Da esquerda para direita: Ilha de Creta, Paris e Porto.
Muito mudou desde que deixei a minha outra vida nos EUA, na verdade, quase tudo, mas uma constante permanece, persiste e, acima de tudo, prevalece - cinema. Cinema no sentido de filmmaking, mas não filmmaking da forma como é abusada hoje, como se todo Youtuber fosse um filmmaker, mas filmmaking “as in film making”, como em “fazer filmes”, filmes que tenham um enredo, um começo, meio e fim. Mas filmmaking ou cinema como conhecemos, está prestes a chegar ao seu fim.
A Singularidade Cinematográfica

Como se diz nos EUA, “se você não está morando embaixo de uma pedra”, você deve estar a par do writers’ strike que vem ocorrendo desde maio em Los Angeles e Nova Iorque e que está - finalmente - chegando ao fim esta semana. Os roteiristas da WGA (Writers Guild of America) entraram em greve para reivindicar seus direitos que foram usurpados durante a transição do cinema para as plataformas de streaming (Netflix, Disney+, Hulu, etc), mas a razão da greve estar ocorrendo agora e não daqui a um ano - ou mesmo daqui a alguns meses, é uma que afeta eu, você e os futuros nós: a chegada da bendita e maldita inteligência artificial.
Em um dos meus primeiros artigos no antigo blog, no Curso de Cinema, intitulado “O Fim do Filme”, prevejo o fim do filme-película devido a revolução das DSLRs e a adoção das câmeras digitais profissionais, como a Red One, e se não fosse por um esforço sobrenatural de aficionados como Nolan e Tarantino, a Kodak teria falido e, hoje, não teríamos nem os 3% dos filmes que são ainda rodados em celulóide, opostos aos mais de 50% em 2013.
Dez anos depois, em 2023, o ano já conhecido como o ano da inteligência artificial, nos encontramos em outro ponto de inflexão, exceto este muito mais avassalador ameaçador do que qualquer outro antes. Uma vez que houverem geradores I.A. com capacidade de escrever roteiros com atos, conflitos e desfechos, soluções “text-to-video”, como um Midjourney acoplado a um Unreal Engine autônomo que produza esses enredos em formato cinemático, é “the end” para nós, cineastas.
É elementar extrapolar que, por ventura, o prompt poderá ser algo tão simples como… “/imagine (ou re-imagine): A última temporada do Game of Thrones baseada no último livro do George R. R. Martin.” ou “/imagine: Um longa-metragem baseado nos filmes Missão Impossível mas comigo como protagonista.”, horas infinitas de entretenimento personalizado, sem a nossa contribuição e sem custos de produção. Por mais sci-fi que isto soe hoje, esta realidade não é somente inevitável, mas mais próxima do que estamos prontos para lidar com ela.
O Exterminador do Futuro recriado pelo artista de deepfakes Ctrl Shift Face com Sylverster Stallone, Brad Piit e Jim Carrey
Acredito que não preciso convencê-lo dos avanços nesta área, mas para propósito ilustrativo, aqui estão alguns relevantes ao contexto de filmmaking:
Adobe Firefly
Firefly é a solução de I.A. da Adobe que está permeando todos os seus aplicativos. Não é exagero prever que Firefly - e similares - serão o futuro da edição de vídeos.
A versão do Firefly para vídeo - que ainda está para sair do forno - apresenta ser capaz do que, mesmo hoje, parece mais ficção científica. De acordo com a Adobe, o Firefly possibilitará:
- Geração de trilhas sonoras originais e sob medida; o que irá além do que geradores de músicas que utilizam I.A. - como Soundraw, Aiva e Beatoven são capazes, pois o gerador I.A. é integrado ao editor de vídeo.
- Adição automática de efeitos sonoros. No promo abaixo, vemos um clipe - sem som - de ondas quebrando em uma praia. Com o clicar de um botão, o Firefly busca e apresenta opções para efeitos sonoros relacionadas ao clipe.
- Correção de cor por prompt; ou seja, você escreve: "alterar para a luz do fim de tarde" e o clipe é colorizado de acordo, mas não apenas o clipe como um todo, mas áreas individuais do clipe, como o rosto do ator.
- Criação de B-roll. Também no promo abaixo, o editor pede ao Firefly por takes complementares relacionados a uma alpinista sendo entrevistada e, como por um passe de mágica, estes clipes se materializam na timeline.
- Geração de storyboards - onde você faz o upload do seu roteiro e o Firefly se encarrega do resto, e geração de previz com o storyboard criado pelo Firefly, onde o mesmo cria uma pré-visualização animada deste storyboard. 🤯
Runway Gen-2
Runway Gen-2 é a primeira iteração de inteligência artificial generativa text-to-video & text-to-image capaz de gerar vídeos para produção de filmes, como o curta abaixo.
Brinquei com a ferramenta e admito que ela ainda demanda muito talento humano para extrair-se clips que possam ser constituídos em algo coerente, pois o que é produzido ainda é tão rústico e imperfeito que a tarefa se assemelha mais a um processo de eliminação do que a um processo de criação.
Acredito que com Gen-3 seremos capazes de produzir vídeos que serão indistinguíveis de imagens reais no contexto de espaços e objetos não-orgânicos, e que Gen-4 fará o mesmo para a geração de animais e seres humanos.
Wonder Studio
Esta ferramenta de I.A. da Wonder Dymanics promete automatizar 80% à 90% do trabalho de captura de movimento em VFX. Foram-se os dias do artista ter que vestir o traje de motion capture (aquele macacão com trocentas bolas de ping-pong) e outro artista de gráficos 3D ter que animá-lo no complexo Maya (sei, porque fiz um semestre de Maya 3D na faculdade). Agora, você joga o seu vídeo no Wonder Studio, faz um simples "drag & drop", e voilà.
Eles oferecem uma dúzia de modelos para você "brincar" e também a possibilidade de importar os seus próprios personagens 3D FBX, mas a ferramenta fica na nuvem com a interface no navegador.
Ainda há problemas com iluminação e retargeting, e ela está longe de substituir ferramentas, como Maya e Blender para profissionais - mesmo porque você ainda precisa delas para criar seus personagens - mas, para animadores entusiastas que querem criar seu curta, ela é revolucionária - e imagino que uma versão prompt para a criação de modelos já deve estar em andamento.
Apresentação do Wonder Studio
Outras ferramentas I.A. mais conhecidas mas que vale mencionar:
- Unreal Engine 5 (Animação 3D IA)
- Pika Labs (Texto-para-Vídeo IA)
- Eleven Labs (Gereção de Voz IA)
Depende...
O recente ditado que diz, “Inteligência artificial não vai tomar seu emprego, mas quem sabe usar I.A. irá.”, pode ser verdade no momento, mas, em pouco tempo - como evidenciado acima, chegaremos a “singularidade cinematográfica” (termo que inventei) onde a inteligência artificial ultrapassará a capacidade de nós, cineastas, produzirmos filmes - mesmo que os mesmos sejam “filmes pipoca” e derivativos de filmes criados por nós, humanos.
Isto significa que o seu trabalho como escritor, diretor, produtor, etc, se tornará obsoleto?
Na verdade, sem algum tipo de intervenção governamental é difícil imaginar qualquer carreira, artística ou não, que não sofra alguma reestruturação radical ou mesmo uma de extinção meteórica devido a inteligência artificial. Segundo a Forbes, até mesmo advogados estão ameaçados pela I.A. - não há refúgio.
Semana passada, Elon Musk, Bill Gates, Mark Zuckerberg e outros magnatas do Vale do Silicone, atenderam um summit de portas fechadas com senadores americanos para discutirem o que fazer sobre inteligência artificial. Musk advertiu, "Precisamos ser proativos em vez de reativos... a questão é um risco civilizacional." Ele também endossou a ideia de uma nova agência federal para supervisionar inteligência artificial.

Então… continuo correndo atrás de uma carreira em cinema ou chuto o balde e vou viver uma vida “off-grid” em uma cabana nas chapadas?
Pior do que ter que trabalhar em feriado emendado, pior do que acordar com a furadeira do vizinho no sábado de manhã, pior do que quebrar um ovo podre na massa de pão de queijo, é alguém que responde “depende”. Nada me tira do sério como ler um artigo de blog ou assistir um vídeo no Youtube onde o sujeito me promete uma resposta a minha dúvida existencial e, ao invés, me violenta com um “depende”. Mas, disto isto, depende…
Depende do tipo de sucesso que você procura no cinema. Se a sua definição de sucesso for algum tipo de garantia - seja profissional ou financeira, talvez mudar para o meio-do-nada e viver uma vida sustentável, “off grid”, seja a melhor aposta - e não estou sendo facecioso. Mas, se a sua definição inicial de sucesso em filmmaking for "film making", for fazer filmes, mesmo se apenas algumas pessoas venham a assistir o seu filme, mesmo se dessas "algumas" apenas uma venha a gostar do seu filme, e mesmo se esta “uma” for você… você tem a sua resposta.
A verdade é que a realidade de se escolher uma carreira no cinema sempre foi incerta, não será inteligência artificial que irá tornar o seu sonho/objetivo de se tornar/de se manter um filmmaker quase impossível, odeio ter que dizer/admitir, mas... sempre foi. E, até transhumanismo se tornar realidade e atingirmos uma relação cibernética-cerebral com estas entidades, onde elas têm completo acesso às nossas mentes e identidades, I.A. nunca será capaz de criar o que apenas você, com a sua individualidade, com a soma dos seus erros e acertos, e a sua forma única de interpretar estas experiências é capaz de criar.
O desfecho ao que quero chegar é: Não, você, como cineasta, storyteller, você que que tem algo a ser dito, algo dentro de você que precisa ser expelido, colocado para fora de forma artística, você não irá ser substituído, não irá se tornar obsoleto, não para mim, e não para muitos; não agora. Chame de dom, maldição, sonho, vocação ou desilusão, mas cinema é o que me completa, muito do que me define e do que me traz harmonia, mas, mais importante… se você for como eu, você não tem escolha.

No filme Rounders (1997), Mike McDermott, o herói da história interpretado por Matt Damon, senta diante do professor Petrovsky, o arquétipo ancião sábio. O professor, judeu, conta ao Mike que aos 12 anos ele era o orgulho do seu Yeshivá, do seu templo, pois tinha uma compreensão do Midrash, de textos religiosos judaicos, de uma pessoa de 40 anos, mas que aos 13, ele sabia que nunca seria um rabino como seus antecessores e que, ao invés, perseguiria a profissão de direito contra tudo e contra todos. Sua família ficou devastada e o deserdou, e seu pai nunca mais falou com ele. Mike, então, pergunta… “Se você pudesse, você faria a mesma escolha?” O professor responde, “Que escolha?”
Cinema em Equipe
Mas... Por que diabos você está retornando com um blog de filmmaking em plena extinção da nossa espécie?
Como disse no início, o propósito para o antigo blog (Curso de Cinema) era democratizar filmmaking. Com o Cineasto a minha proposta é outra, mais ambiciosa, e depende mais de você do que de mim.
Caso de Estudo: The Movie Brats
Em meados dos anos 70, muitos dos filmmakers mais competentes que conhecemos hoje, confraternizavam-se em uma casa em Beverly Hills intitulada: "Carrie Fisher's House", por ser a casa da atriz Carrie Fisher (Princesa Leia do Guerra nas Estrelas, mas antes mesmo de Star Wars existir).
Estes cineastas, que na época mais nada eram do que promessas, congregavam-se para discutirem cinema, idéias, e para socializarem-se com outros cineastas, músicos e artistas em geral. De lá, naturalmente formou-se uma espécie de fraternidade nomeada, "The Movie Brats" (Os Pirralhos do Cinema), com Steven Spielberg, Martin Scorsese, Brian De Palma, George Lucas, Francis Ford Coppola, John Milius e Paul Schrader.
A relação entre eles ia além da amizade e camaradagem, eles foram peças instrumentais nos trabalhos um dos outros. George Lucas foi assistente de edição no Poderoso Chefão (1972), de Coppola, Brian De Palma ajudou Lucas a reinventar o início do Guerra nas Estrelas (1977), Spielberg auxiliou na pós-produção do Taxi Driver (1976) de Scorsese, e assim por diante.




Eu não acredito - e nem os brothers acima acreditam - que eles teriam atingido o nível de sucesso que atingiram e mantiveram se não fosse por essa relação simbiótica. A minha intenção com o Cineasto ainda continuará sendo - em parte - democratizar filmmaking mas o meu intuito principal é de criar um espaço onde nós, cineastas, poderemos apoiar uns aos outros de forma coletiva nas nossa jornadas individuais. No que isso traduzirá? O tempo dirá.
Cinema, diferentemente de outras artes, sempre foi uma empreitada colaborativa, um exercício em grupo. No entanto, nesta nova - e incerta - era da inteligência artificial e de executivos de estúdios colocando em cheque o nosso direito de existir, faz surgir-se uma necessidade de nos unirmos que vai além da mera vantagem.
Mais do que nunca, precisamos de nos disponibilizar e dar suporte uns aos outros, como os mestres acima uma vez fizeram, não somente para atingir nossas metas pessoais mas, pela primeira vez, para proteger a sobrevivência da nossa espécie. E, uma vez que não temos escolha, e estamos juntos nessa, por que não nos juntarmos?

A minha visão para o Cineasto vai além do blog - como enfatizei, mas, no momento, não há promessas, apenas a esperança de que o que foi dito acima faça algum sentido à alguns de vocês, pois somente assim essa visão poderá se concretizar de alguma forma.
À princípio, artigos genéricos como este estarão disponíveis à todos que inscreverem-se no Cineasto, mesmo pelo Plano Gratuito. Artigos mais aprofundados, que não são de interesse a todos mas de extremo valor para aqueles que têm algum interesse profissional no assunto, serão parte do plano pago.
O valor de se tornar um membro pagante ainda está por vir. Mantive alguns artigos do Curso de Cinema que ainda oferecem algum valor disponível para todos, mas o valor de se tornar um membro pagante agora, está no DESCONTO VITALÍCIO que estou oferecendo aos primeiros membros.
De certa forma, é, sim, o começo do fim do cinema, mas é também o início de algo novo. Espero poder acrescentar algo na sua jornada cinematográfica e você na minha. Novamente, bem-vindos!
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